Carlos Nelson Coutinho |
A presente postagem é uma singela homenagem a
um dos maiores intelectuais orgânicos que tivemos – Carlos Nelson Coutinho. Sua
contribuição para o cenário acadêmico e social brasileiro é incomparável!
Escreveu mais de uma dezena de livros, a
começar por “Literatura e humanismo”, lançado no final dos anos
1960 pela Editora Civilização Brasileira, de Ênio Silveira. Em “Literatura
e humanismo”, já estão presentes algumas qualidades que o distinguiriam nos
anos seguintes, como a clareza de pensamento, a escrita elegante e a percepção
refinada de autores fundamentais, como atesta o ensaio sobre Graciliano Ramos.
Também neste livro inaugural está presente a influência decisiva do filósofo
húngaro Georg Lukács, cujas ideias sobre o realismo norteavam as pesquisas do
então jovem crítico brasileiro.
Ao voltar do exílio em Bolonha (1970) produziu
o ensaio “A democracia como valor universal”, fortemente inovador na
cultura comunista, exatamente por ter como assumida fonte de inspiração o
pensamento político amadurecido em torno do antigo PCI, muito especialmente
Enrico Berlinguer e Pietro Ingrao. Difícil subestimar o papel deste ensaio,
sobre o qual, posteriormente, o próprio autor se voltaria em diferentes
ocasiões, ratificando-o e retificando-o em variados pontos: esta é,
precisamente, a função de um ensaio seminal.
A partir deste momento, incorpora-se
vigorosamente à reflexão de Carlos Nelson a presença de Antonio Gramsci:
pode-se dizer que, a partir de uma original articulação de Lukács e Gramsci —
isto é, dos problemas da ontologia do ser social e da política tal como
experimentada nos países “ocidentais” —, tenha se estruturado a produção
posterior de Carlos Nelson Coutinho, até o livro mais recente, “De
Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria política”, publicado em 2011.
Nos últimos meses, mesmo abalado pela doença,
Carlos Nelson dedicava-se a uma história da filosofia, testemunho da enorme
erudição e inquietação intelectual que o acompanhou por toda a vida. Nos anos
1980, com a crise do PCB e o afastamento de grande parte dos “eurocomunistas”
brasileiros, Carlos Nelson passaria pelo PSB (expressão do seu interesse pelo
socialismo democrático, uma vez que o PSB de Carlos Nelson era aquele
histórico, do pós-1945, marcado por figuras como Hermes Lima e João
Mangabeira), pelo PT e, a partir de 2003, pelo PSOL. Estas opções políticas,
naturalmente, deixaram marca na produção teórica do nosso autor, que está
destinada a ser tema de estudos e reflexões por parte de todos aqueles que se
preocupam com o destino do humanismo, da democracia e do socialismo no nosso tempo.
A entrevista abaixo publicada originalmente
pela “Revista Sem Terra” é uma ótima dica para quem deseja conhecer um pouco
mais sobre o autor e criar uma visão crítica sobre suas discussões...
“PRECISAMOS COLOCAR EM DISCUSSÃO AS GRANDES QUESTÕES POLÍTICAS"
O debate político tomou conta de parte da população e dos meios de
comunicação no país. São generalizadas as discussões sobre a vida parlamentar,
os casos corrupção e cassações, as comissões parlamentares de inquéritos, a
compra de deputados, a reforma política e as formas de financiamento de
campanha dos partidos políticos.
O pensamento
do ativista político comunista e filósofo italiano Antonio Gramsci, autor de
“Cadernos do Cárcere”, contribui para a compreensão do quadro brasileiro. Para
Gramsci, a política tem uma dupla dimensão: a da “pequena política”, voltada
para a administração das instituições existentes, e a da “grande política”,
correspondente à transformação ou conservação das estruturas orgânicas
econômicas e sociais.
“Há um
avanço muita claro da ‘pequena política’ sobre a ‘grande política’. Esse é um
dos elementos fundamentais da hegemonia neoliberal”, explica Carlos Nelson
Coutinho, professor de Teoria Política da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e autor de "Gramsci: Um Estudo sobre seu Pensamento Político”.
Um dos
maiores especialistas em Gramsci no Brasil, o professor acredita que a esquerda
precisa ampliar o foco do debate para levar à sociedade as grandes questões
políticas. Para avançar nesse sentido, os movimentos sociais não podem
conciliar com a política menor e devem colocar suas exigências na ampla agenda
política.
De acordo
com Coutinho, depois da cooptação do PT, a disputa eleitoral tende ao
revezamento de dois grupos partidários com projetos parecidos, sem perspectiva
para mudanças estruturais. “Cria-se dois blocos de partidos, um centrado no PT
e outro no PSDB, que provavelmente vão se alternar no governo, mas sem maiores
modificações. Tanto faz um como o outro: a economia está blindada”, afirma.
Outra
categoria gramsciniana apresentada nesta entrevista surge da diferenciação das
sociedades de tipo “Ocidental” e “Oriental”. Termos originalmente geográficos,
ganharam um caráter histórico-político com a conceituação formulada pelo
filósofo italiano. Na sociedade “Oriental”, o Estado-coerção prevalece diante
de uma sociedade civil primitiva e gelatinosa. Já na “Ocidental”, há uma
relação equilibrada entre Estado e sociedade civil, espaço de disputa da
hegemonia ideológica.
A sociedade
civil brasileira teve um papel importante na vida política do país, tanto que
foi duramente reprimida pela ditadura militar. Mesmo assim, conseguiu resistir.
Coutinho considera o Brasil como um país de tipo “Ocidental”, mas aponta uma
tendência de “ongzação”. Cria-se uma suposta lógica independente de Estado e
mercado e, com isso, a luta dos diversos grupos deixa de lado as necessidades
de toda a população, limitando-se a pontos corporativos. “A sociedade civil é
terreno da luta de classes e de conflito profundo. Há uma tentativa de ‘americanização’.
Querem transformar até mesmo o movimento operário em um instrumento puramente
reivindicativo”, denuncia.
Leia a
seguir a entrevista com Carlos Nelson Coutinho.
Igor Felippe Santos: A essência
da atividade política está em crise no Brasil?
Carlos Nelson Coutinho: Não só no Brasil, mas no mundo,
tenho observado um avanço muita claro da “pequena política” sobre a “grande
política”. Esse é um dos elementos fundamentais da hegemonia neoliberal. Com
isso, modificações de governos não alteram as relações de poder. Um exemplo
claro no Brasil de hoje é a chamada “blindagem da economia”. A grande
preocupação do governo e da oposição é proteger a economia, ou seja, proteger o
aspecto ligado a estrutura e organização. A crise que acontece no Brasil é muito
mais da “pequena política” do que da política em sentido mais amplo. A
discussão das cassações, da reforma política, voto por lista, eleição distrital
tem sua importância, mas na verdade não tocam as grandes estruturais do país.
Isso está afastado da agenda política.
Igor Felippe Santos: Por que
isso aconteceu?
Carlos Nelson Coutinho: Em grande parte por culpa do
governo do PT, que abandonou as grandes propostas do partido e se concentrou em
gerir o existente e administrar uma política herdada. Estamos diante do triunfo
da “pequena política”, que está marcando a vida brasileira e internacional. Não
é um fenômeno só brasileiro.
Igor Felippe Santos: Como
colocar a discussão das grandes questões na sociedade brasileira?
Carlos Nelson Coutinho: É fundamental que os movimentos
sociais não conciliem com esse tipo de política pequena e continuem colocando
suas demandas na agenda política geral. Nesse sentido, o MST tem cumprido o
papel. Talvez seja o único movimento social significativo no Brasil que continua
colocando as questões de estrutura em discussão. A direção da Central Única dos
Trabalhadores (CUT), por exemplo, foi cooptada por esse modelo de governo. Não
é casual que o presidente da CUT virou ministro do Trabalho [Luiz Marinho,
empossado em julho]. Eu vejo com simpatia a criação do PSOL (Partido do
Socialismo e Liberdade), um novo partido de esquerda, ainda em formação. Não
está bem definido ainda seu programa e suas atividades, mas tem uma intenção
explícita de recuperar e resgatar as bandeiras que o PT abandonou. E, portanto,
pretende colocar na agenda política as grandes questões, como a construção de
uma nova ordem social e reformas radicais que caminhem nesse sentido. É o que
podemos fazer.
Igor Felippe Santos: Com a
consagração da “pequena política”, a alternância de grupos no governo não vai
promover as mudanças na estrutura social do país?
Carlos Nelson Coutinho: Infelizmente é o que tende a
ocorrer no Brasil. Cria-se dois blocos de partidos, um centrado no PT e outro
no PSDB, que provavelmente vão se alternar no governo, mas sem maiores
modificações. Tanto faz um como o outro: a economia está blindada. É ótima essa
expressão. O que conta se a economia está blindada? Em um discurso, Lula dizia
o seguinte: ficam querendo que eu me meta na questão da taxa de juros, isso não
é um problema da presidência da República, é do Banco Central. O presidente do
BC não foi eleito. Mais de 52 milhões de pessoas votaram no Lula e ele abriu
mão de decidir aquilo que é fundamental para o país, que é a política econômica
e monetária. É uma prova clara de que estamos longe de viver uma situação
efetivamente democrática. O povo não tem como interferir com o voto nem com
pressão nas grandes decisões que afetam o destino de todos nós.
Igor Felippe Santos: Quais os
desafios da esquerda dentro dessa conjuntura de polarização entre dois blocos
sem diferenças significativas?
Carlos Nelson Coutinho: Precisamos colocar em discussão
as grandes questões políticas. É uma tarefa que depende de toda a esquerda. Não
é uma tarefa apenas do PSOL. Temos que criar um diálogo permanente entre a
esquerda do PT - incapacitada de definir uma linha para o partido que discorde
do governo, mas composta de pessoas valorosas que merecem nosso respeito – e
com o PSTU, com quem frequentemente discordo pelas posições sectárias. E,
sobretudo, com os movimentos sociais. A função do MST é fundamental. Se o MST
for cooptado, o que infelizmente é uma possibilidade, será uma tragédia ainda
maior para a esquerda brasileira do que a cooptação do PT e do governo Lula.
Por exemplo, a “Carta aos Brasileiros” foi infeliz. Embora dissesse que era
contra a política econômica, defendia o governo Lula, que diz explicitamente
que não vai mudá-la. A carta fala também do mito da conspiração das elites.
Pelo contrário, Lula continua no governo porque as elites querem. A blindagem
da economia implica manter Lula lá porque faz a política que interessa ao
capital financeiro e ao grande capital em geral. Naquele momento eu fiquei
preocupado. Seria extremamente negativo para a esquerda brasileira se um
movimento tão importante e significativo como o MST deixasse de lutar pela
agenda política que sempre lutou, com uma proposta anticapitalista.
Igor Felippe Santos: Diante das
imensas dificuldades, como reascender a discussão do socialismo?
Carlos Nelson Coutinho: Quem impõe à sociedade o
socialismo é o capitalismo. Com suas enormes contradições, superadas por meio
de novas contradições, cada vez maiores, o capitalismo coloca na ordem do dia a
necessidade de outra ordem social, que é o socialismo. Uma ordem social
solidária, não fundada no lucro privado, mas no interesse público. Pode haver
formas de propriedade privada em alguns casos, mas seguramente os grandes meios
de produção devem estar socializados. Para definir uma sociedade como
socialista é fundamental que haja a socialização do poder político. Isso não
ocorreu nos países do chamado “socialismo real”, o que explica o seu colapso.
Imagino o socialismo no século 21 com uma crescente participação popular, com
institutos de representação e parlamentos – é impossível no mundo de hoje não
haver nenhuma representação – que têm que ser controlados por organismos de
democracia direta de base, como conselhos locais e de fábrica, entre outros.
Dessa forma, se cria espaços para uma autogestão dos trabalhadores sobre o
conjunto da sociedade. O socialismo terá que ser profundamente democrático no
sentido da integração da representação com a participação direta.
Igor Felippe Santos: Como
trazer as massas para o jogo político?
Carlos Nelson Coutinho: É um grande desafio, uma tarefa
cotidiana de todos nós. É preciso nos organizar e contribuir para a organização
popular. Não fazemos política isoladamente. Um grande intelectual pode fazer
uma declaração e influenciar pessoas, mas o caminho correto para fazer política
é por meio da organização, em partidos ou movimentos.
Igor Felippe Santos: Vivemos em
uma sociedade extremamente individualista. As pessoas querem levar vantagem em
tudo e os anseios privados prevalecem. Nas cidades, esses valores parecem mais
fortes que no campo. Como inverter a situação nos espaços urbanos?
Carlos Nelson Coutinho: No final dos anos 70, ainda sob a
ditadura, houve um movimento associativista nas grandes cidades extremamente
significativo, com a associação de moradores e favelados. Isso teve um papel
importante no desgaste da ditadura e contribuiu para o fim do regime. Há um
estudo que mostra que foram criadas mais associações no Rio de Janeiro, entre
1970 e 1980, que em todo o século 20. Foi um período muito rico. Portanto, é
possível um associativismo urbano, inclusive de moradores de classe média e
também favelados. Quem é culpado pela desativação do movimento social? É o PT
ou o PT deu a guinada à direita porque o movimento social se enfraqueceu?
Dialeticamente, são os dois fatores. Certamente, uma das nossas tarefas
fundamentais é reativar o movimento social. O Gramsci tem uma frase muito
bonita: um comunista deve combinar o pessimismo da inteligência com o otimismo
da vontade. Não podemos ter ilusão na análise da realidade. Estamos vivendo uma
realidade difícil. A esquerda está em retrocesso em todo o mundo. Tanto mais
difícil é a situação tanto mais carecemos do otimismo da vontade para
transformá-la. A análise pessimista não pode nos levar ao imobilismo. Ao
contrário, deve nos levar a uma capacidade de ação e intervenção ainda maiores.
Igor Felippe Santos: Como você
avalia a organização da sociedade civil brasileira durante o governo Lula?
Carlos Nelson Coutinho: O Brasil é uma sociedade mais
“Ocidental” do que “Oriental”. Há uma sociedade civil forte que se construiu e
vem se construindo há décadas. Teve um papel importante na vida política
brasileira no período dito populista. Foi reprimida duramente pela ditadura, e
conseguiu se manter. Teve um papel decisivo no fim do regime militar. Mas há
dois tipos de organização nas sociedades “ocidentais”: o modelo americano e o
modelo ex-europeu - que está mudando. No modelo dos Estados Unidos, há uma
sociedade civil organizada em torno de interesses puramente corporativos, com
um associativismo limitado a questões extremamente particularistas. Faltam
discussões dos grandes temas políticos. De maneira esquemática e simplificada,
eu chamaria de “ongzação”. Criou-se uma ideologia que redefine a sociedade
civil com o reino do bem, do voluntariado e para além do Estado e do mercado. É
um mito. A sociedade civil é terreno da luta de classes e de conflito profundo.
Há uma tentativa de “americanização”. Querem transformar até mesmo o movimento
operário em um instrumento puramente reivindicativo. É um risco.
Igor Felippe Santos: O setor
bancário e as bolsas de valores são os setores mais beneficiados nos últimos
anos pela no Brasil. Pode-se dizer que o capital financeiro tem a hegemonia na
sociedade?
Carlos Nelson Coutinho: Dizer que tem a hegemonia na
sociedade é complicado. Na década de 30 se formou no Brasil um bloco burguês,
uma coalizão de frações burguesas. Até o final da ditadura, na década de 80, a
fração industrial foi predominante. Isso marcou as políticas do período de alto
crescimento e colocou o Brasil entre os países que mais cresceram no mundo. O
triunfo do neoliberalismo é expressão do fato de que a fração financeira do
capital, o capital bancário, mais precisamente, passou a ser a fração
hegemônica no bloco de poder no Brasil e no mundo. A burguesia industrial
continua também no poder, mas em condições não tão favoráveis como para o
capital financeiro. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e
o vice-presidente José Alencar - que se revelou paradoxalmente à esquerda de
Lula – brigam contra a taxa de juros. Não é casual. Os industriais não se
beneficiam com essa altíssima taxa de juros. Quem se beneficia é o capital
financeiro e setores da camada média que têm aplicações financeiras. A fração
financeira do grande capital tem a hegemonia conflitiva sobre as outras frações
do capital. Vendeu a idéia de que a estabilidade monetária e o equilíbrio
fiscal são fundamentais para a salva-guarda da economia e do capitalismo, e as
outras frações aceitam.
Igor Felippe Santos: Mas o
capital financeiro continua avançando para a sua consolidação ideológica?
Carlos Nelson Coutinho: No Brasil de hoje há uma
tendência da hegemonia de valores neoliberais, como as idéias de que temos que
levar vantagem em tudo, cada um que lute pela sua vida, pobre é pobre porque é
preguiçoso, quem tem mérito sobe na vida... Mas há resistências. Não há uma
hegemonia consolidada da burguesia no Brasil como nos Estados Unidos. Em um
Estado de tipo “Ocidental”, como é o caso brasileiro, além da coerção, as
classes dominantes precisam consolidar seu domínio pela hegemonia. Estão
tentando. A hegemonia neoliberal ainda é colocada em discussão permanentemente.
A vitória eleitoral do Lula é em grande parte resultado do fato de que se votou
contra o modelo neoliberal. Infelizmente, de certo modo, o governo Lula
contribuiu para consolidar a hegemonia neoliberal.
Igor Felippe Santos: De que
maneira o governo ajudou o neoliberalismo?
Carlos Nelson Coutinho: O mais grave do governo petista
não é que tenham abandonado as velhas propostas e tenham aderido ao
neoliberalismo. Ao fazer isso, eles esvaziaram as forças sociais que resistiam
ao neoliberalismo, como o PT e os movimentos sociais. Paradoxalmente, temos uma
situação de consolidação neoliberal pior do que no governo Fernando Henrique,
quando havia oposição real. Na Argentina, Carlos Menem [presidente do país
entre 1989-99] privatizou tudo. A radicalidade da política neoliberal na
Argentina foi muito maior que no Brasil. Não porque FHC não fosse tão liberal
quanto Menem, mas havia o PT, a CUT e o MST que combatiam. A resistência está
enfraquecida exatamente porque PT e CUT, particularmente, deixaram de oferecer resistência
ao neoliberalismo. O governo petista se tornou o terceiro governo da Era FHC –
como diz Chico de Oliveira. Há uma hegemonia do neoliberalismo razoavelmente
consolidada, mas ainda questionada permanentemente. Até porque o neoliberalismo
só fez piorar as condições de vida do povo brasileiro e aumentou a miséria. Os
“bolsas-famílias” não vão resolver. No período de 1930 até o final dos anos 80,
houve uma certa taxa de inclusão social, com trabalhadores de carteira assinada
e direitos previdenciários. Tivemos idas e vindas. Na ditadura caiu o salário,
mas não foi tanto. Mantiveram um certo padrão de vida dos trabalhadores. De lá
para cá, com o triunfo do neoliberalismo as condições de vida pioraram, os
direitos sociais estão sendo desconstruídos e a parcela da renda do trabalhador
no PIB (Produto Interno Bruto) diminuiu substantivamente. Em um quadro como
esse, é muito difícil obter o consenso.
Igor Felippe Santos: Para a
esquerda construir a sua hegemonia, é possível contar com uma parcela da burguesia
ou é preciso trilhar por outro caminho?
Carlos Nelson Coutinho: É um fato real a idéia de que
setores do pequeno e médio capital podem estar interessados em uma política
antineoliberal. Tanto uma burguesia média urbana como rural também - embora a
União Democrática Ruralista (UDR) tenha tido a habilidade para hegemonizar o
pequeno produtor rural, em nome da defesa da propriedade. Setores da burguesia
podem aceitar algumas propostas. De qualquer forma, o centro da aliança
alternativa ao neoliberalismo deve ser os trabalhadores urbanos e rurais.
Trabalhadores no sentido amplo, não só classe operária fabril, mas do setor de
serviços, tradicionalmente chamado de pequena burguesia, mas que hoje de
burguesia não tem nada, só de pequena.
Igor Felippe Santos: Pela via
institucional é possível engendrar as transformações na sociedade?
Carlos Nelson Coutinho: Eu acredito mais numa combinação
entre a via institucional e pressões vindas de baixo. Entendo democracia como
um sistema que integra fortemente instituições, evidentemente, mas participação
popular. As transformações poderão passar pelos caminhos institucionais, mas só
na medida em que houver pressão de baixo e institutos de democracia direta que
corrijam as distorções de democracia representativa.
Igor Felippe Santos: Dentro da
idéia de combinação de disputas eleitorais e pressões populares, como deve ser
a relação dos partidos de esquerda com os movimentos sociais?
Carlos Nelson Coutinho: Deve ser de diálogo permanente.
Aliás, um problema do PSOL é que ele não nasce ligado a fortes movimentos
sociais. Ao contrário do PT, que surgiu a partir do movimento social,
particularmente operário e sindical. Isso foi um fator muito importante para a
dinamização e crescimento do partido. O PSOL ainda não conseguiu isso, mas é
uma tarefa fundamental. O Gramsci acredita que os intelectuais sabem, mas nem
sempre sentem, e o povo sente, mas nem sempre sabe. É de um diálogo entre
intelectuais e movimentos sociais que podemos formular um bloco histórico
efetivamente transformador. Os partidos devem dialogar e aprender com os
movimentos, mas ao mesmo tempo deve dar uma diretriz geral, sem reprimir as
demandas particulares dos movimentos, mas que seja capaz de potenciá-las numa
frente mais ampla que envolva o conjunto da sociedade.
Igor Felippe Santos: O PT
surgiu com uma nova base ideológica, que negava tanto o socialismo soviético
como a social-democracia européia. Com o tempo foi se burocratizando e perdendo
as características originais. Na Europa aconteceu a mesma coisa com os partidos
de esquerda. Quais devem ser as características de um novo partido de esquerda
para evitar que os mesmos erros se repitam?
Carlos Nelson Coutinho: Também aqui não há nada que nos
assegure contra isso. É sempre uma tarefa dos militantes e da direção do
partido lutar para evitar o risco burocrático. O sociólogo alemão conservador
Robert Michels escreveu um livro chamado “A sociologia dos partidos políticos”,
no qual faz um estudo empírico da social-democracia alemã para mostrar como um
partido revolucionário e radical foi progressivamente se burocratizando e
terminou por ser um partido pouquíssimo democrático integrado ao sistema.
Michels chegou a criar uma “lei de ferro da oligarquia”: toda organização
termina fatalmente oligárquica. Apesar de discordar da tese, é um risco real.
Igor Felippe Santos: Vale a
pena correr o risco?
Carlos Nelson Coutinho: É um risco que inevitavelmente se correrá. Não é fatal que triunfe a
burocratização. Eu continuo considerando o partido político como uma forma
imprescindível na luta social. O partido revolucionário e transformador tem
exatamente como função básica universalizar as demandas dos diferentes setores
e colocar uma alternativa de sociedade. Para Gramsci, quando um partido não
cumpre as suas funções, um intelectual importante, um jornal ou um grupo de
jornais e um movimento podem ocupar a função. Se um partido não faz isso, um
movimento social pode fazer, apesar de não poder ter a função precípua de um
partido político.
É possível um partido revolucionário se manter
revolucionário participando do jogo institucional?
Carlos Nelson Coutinho: Depende do que a gente entende
por revolução. Na história do próprio pensamento marxista, há diferentes
conceitos de revolução. A depender do contexto concreto, há estratégias
revolucionárias diferenciadas. Há a estratégia de assalto ao poder, nas
sociedades de tipo “Oriental” - que foi vitoriosa na Rússia de 1917 - que me
parece inadequada para países de sociedades mais complexas, nas quais deve
vigorar a “guerra de posição”. Eu tenho chamado essa estratégia de
reformismo-revolucionário. Nós podemos trabalhar lutando por reformas radicais,
mas tendo como objetivo final a superação do capitalismo. Não é substituir a
revolução pela reforma, mas combinar dialeticamente reformas que apontem no
sentido das transformações da ordem social. Estamos diante de grandes desafios.
A esquerda mundial nunca esteve tão desafiada como está hoje. Nós brasileiros
estávamos na contramão da tendência histórica de declínio da esquerda. O PT é o
único partido de esquerda que cresceu no período de crise do movimento real do
socialismo. Agora não estamos mais, nos encontramos pasteurizados como a
esquerda mundial.
Por: Igor Felippe Santos, no ‘Brasil de Fato’.
Em: Dezembro de 2005.
Acesso em 24 de Setembro, 2012.
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Boas
reflexões!
Abraços!
Bacana a entrevista!
ResponderExcluirParabéns pelo site1
Muito Obrigado!!! Fico feliz pro ter gostado do blog. peço que, se puder, curta ele pelo facebook. Assim, você receberá as novas postagens em seu mural e poderá acompanhá-lo!!! Também, sempre que tiver uma sugestão para as novas postagens, fique a vontade para fazê-la!!! Um forte abraço!
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